• Conceição Veloso Jacobinense, Professora do Colégio Estadual de Jacobina. Atual Diretora de Esporte do Palmeiras Esporte Clube de Jacobina-BA. Licenciada em Letras, Educação Física e Mestranda de Educação Física pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)

Os sertões de Jacobina foram desbravados por bandeirantes paulistas e portugueses, em meados do século XVII que nessas paragens buscavam ouro e metais preciosos. Aqui encontraram os habitantes nativos: Os índios Payayá. Entre 1682 e 1880, a então Vila de Santo Antonio, em meio à garimpagem do ouro e missões religiosas, ascendeu à categoria de cidade, sendo denominada, Jacobina. Essa cidade do interior da Bahia, situada ao norte da Chapada Diamantina, possui imensa biodiversidade, seu bioma caatinga, apresenta diversas espécies animais e vegetais nativas, sem falar das paisagens que tão bem a rodeiam, formada por extensos vales, serras, morros e cachoeiras.

Sobre a incidência histórica do esporte na região de Jacobina, pesquisas apontam que nas décadas de 1920 e 1930 do século XX tem-se indícios de organização esportiva, segundo os periódicos da época como “O Centro” e “O Lidador”. As vivências do futebol surgem em 1930. Segundo Nunes, F. S., & Ribeiro, J. C. (2020),

Os registros agregam ao movimento de interiorização dos esportes no Brasil, fenômeno ocorrido principalmente a partir do início do século XX e confirmam uma tendência evidenciada em recentes estudos históricos sobre o esporte nos sertões brasileiros, em Jacobina, práticas esportivas teriam sido registradas em ambiente ainda de baixa densidade demográfica e tímido processo de urbanização.

Resultado do processo de modernização, os campos de várzea (os campinhos), como o campo galinha morta (posto motinha), cacareco (Félix Tomaz), calumbi (beira do rio) bananeira, campo da piscina, este último, principal palco para as primeiras práticas esportivas da cidade, dão lugar às associações, agremiações, parques, praças, clubes e o estádio, como possibilidade de ampliação de espaços de divertimento, socialização e por conseguinte, competição. Em meados de 1957 é inaugurado o Estádio José Rocha e assim, gradativamente as manifestações esportivas, dentre elas o futebol, ganha maior dimensão.

Foi em 1968 por meio de uma celeuma criada num jogo entre moradores do bairro Serrinha, composto por guardas municipais e policiais militares (primeiro e segundo quadros), em que este último, que sempre obtinha vantagem nas partidas, questionou a titularidade, resultando na dissidência, cisão do segundo quadro que deu origem ao Palmeiras Esporte Clube.

Palmeiras
Fonte: Arquivo Memorial do Palmeiras E. Clube/Jacobina

Neste contexto e, diferentemente das agremiações futebolísticas que o antecederam, teve o apoio do então prefeito da época, José Prado Alves e do seu Secretário de Administração, este, primeiro presidente, formando assim, a primeira diretoria da agremiação. A atividade esportiva apesar do caráter popular, era revestida de certo glamour, elitizada e sinônimo de distinção social, todavia, a cidade conheceu o time alviverde que, apesar de contemplar em seu quadro social pessoas de diferentes classes sociais é composto na sua maioria pelos moradores do bairro. O Palmeiras Esporte Clube tem em seu histórico diversas vitórias em campo e fora dele, como a criação do clube em 1976 e posteriormente a aprovação de seu Estatuto conforme Diário Oficial 2/8/1983 pág 27.

A presença das mulheres no início da história do clube era sutil . Ainda que as mulheres não jogassem futebol neste período em razão de proibições por lei e convenções sociais, elas desempenhavam funções invisibilizadas, quer seja na condição de torcedoras, quer seja no trato dos uniformes, limpeza do espaço, na organização de eventos, documentos, arquivos e constituindo conselhos sem fins deliberativos, é incontestável sua colaboração na construção e fortalecimento do clube no cenário esportivo local.

No Brasil do século XIX, as orientações educacionais e até legais, tentavam limitar o papel da mulher ao maternar e ao lar. No campo esportivo, podiam acompanhar seus maridos nas competições de remo e turfe, primeiros esportes no Brasil . A história das mulheres no esporte sempre foi de enfrentamento da marginalização de seus corpos, razão disso foram os feitos e conquistas em sua trajetória, apesar das restrições e interditos (GOELLNER, S.V 2003). São tímidos, porém, significativos avanços na luta por equidade, de modo que não se pode falar da história do esporte, sem falar da participação feminina.

O Palmeiras Esporte Clube demorou para reconhecer esse desejo. As primeiras manifestações esportivas protagonizadas pelas mulheres na história do clube deu-se na década de 1980, com a participação de Dona Margarida Benício dos Santos Marques na liderança das atividades femininas, sendo a primeira mulher a compor o quadro de conselheiros, conforme entrevista feita com um dos fundadores da agremiação, o Sr. Carlos Santana. Nesse período o fim da interdição e a regulamentação do futebol de mulheres possibilitou ao clube formar sua primeira (e única) equipe de futebol feminino, contrariando o modelo de futebol hegemônico, tornando possível que as mulheres pudessem construir e narrar suas histórias, deixar suas marcas não somente na história do clube, como também na história do futebol local.

2 de Janeiro
Fonte: Histórico do Clube 2 de Janeiro (1983)

A criação da equipe de futebol feminino do Palmeiras Esporte Clube foi imprescindível para uma maior visibilidade da modalidade, sobretudo na imprensa local, visto que a rivalidade existente nas partidas entre as equipes do Palmeiras e da 2 de Janeiro, maior adversária, era notícia local. Não havia mais como silenciá-las.

2 de janeiro
Fonte: Histórico do Clube 2 de Janeiro (1983)

Apesar das transformações sociais, o cenário esportivo, majoritariamente masculino, continuava inapropriado para as mulheres, o “sexo frágil”, comumente rotuladas e estigmatizadas. A condenação do futebol para as mulheres, em razão de sua feminilidade, entretanto não as inibe. Na Bahia esse cerceamento não se deu de modo diferenciado das demais regiões do país. Não apenas na capital, aqui no interior também, meninas enfrentaram inúmeras dificuldades para jogar bola: vergonha para a família, proibição dos pais, desonra, preconceito. Não raro são os relatos de meninas que jogavam bola com meninos. Em caso de subversão, conforme relatos de meninas que saíam escondidas para brincar de bola ou jogar, (a coça era certa); quando não eram apanhadas e/ou conduzidas pela polícia. Como explicar tamanha paixão? Tanto quanto para eles, a paixão pelo esporte pulsa em nossos corações.

A trajetória é extenuante e longa para que as mulheres ocupem espaços legítimos dentro do esporte. Para além da paixão, a luta para equalizar as disparidades é combustível legítimo. Em 1984, além do futebol praticado por mulheres, a história do clube ganha robustez com a participação das mulheres no atletismo, tendo destaque a desportista e conselheira Dona Margarida Benício dos Santos Marques, as atletas Geovanice Guimarães e a Isabela Benício dos Santos Marques, esta, subiu ao pódio, consagrando-se campeã da tradicional Corrida Duque de Caxias (foto da direita)

Palmeiras
Fonte: Arquivo Memorial do Palmeiras E. Clube/Jacobina

Uma das principais expressões da identidade nacional é constituída pelo futebol e sua apropriação colaborou para moldar a identidade cultural do povo brasileiro. A despeito de sua capacidade de transformar a sociedade, o futebol contribui para a manutenção de um cenário esportivo permeado por discriminação, sexismo e preconceito que excluem torcedoras, árbitras, técnicas, dirigentes esportivas e jogadoras.

Apesar da popularização do futebol e suas múltiplas manifestações, a presença das mulheres ainda enfrenta resistência nesse espaço hegemonicamente masculino. Se no limite das quatro linhas ainda existem barreiras para uma mulher, imagine fora? Embora as mulheres tenham conquistado mais espaço e notoriedade no cenário esportivo, ainda é necessário driblar os obstáculos para aquelas que se atrevem a comandar e/ou liderar um clube de futebol, espaço em que a participação feminina ainda é incipiente. São poucas, aliás, poucas conseguem, mas elas existem sim, e resistem!

Uma delas, sou eu, Conceição Veloso, de 47 anos, mãe e professora e uma das primeiras mulheres do interior baiano na presidência de um clube de futebol amador. Amante do esporte, principalmente do futebol e do futsal, nunca joguei futebol, todavia, sempre estive conectada ao mundo do esporte.

Nasci num lar em que o futebol me foi apresentado desde cedo. As memórias afetivas são de meu pai, jogador e fomentador do esporte amador, levando-nos aos campos de várzea para assistir às partidas de futebol junto com meus irmãos. Em prévias de jogos no estádio, a nossa casa ficava em polvorosa, e eu, criança, já experienciava as primeiras emoções do futebol.

Paralelo a isso, a minha participação no cenário esportivo ocorreu na escola, nas séries iniciais, onde participei das primeiras edições de jogos estudantis, na modalidade de atletismo,sendo a primeira colocada na minha bateria e terceiro lugar geral na categoria; Quando adolescente, no ensino médio, fiz parte da equipe de boleado (jogo regional, também conhecido como queimada), sendo campeã, por três anos consecutivos na edição dos jogos estudantis municipais.

Conceição Veloso
Fonte: Arquivo pessoal

Embora a escola tenha sido cenário dos primeiros contatos com as práticas esportivas, a escola não foi, a priori, o locus para eu desenvolver atividades no futebol – meu envolvimento com a modalidade deu-se pelas vivências junto ao Palmeiras Esporte Clube, clube de futebol amador, filiado à Liga Desportiva Jacobinense e Federação Baiana de Futebol.

Maria, assim eu era conhecida nos círculos de convivência do clube, sempre estive presente nas atividades desenvolvidas pela agremiação, logo, ampliar as ações junto ao clube foi questão de tempo. Ao integrar a equipe diretiva, não raras vezes, percebi que minhas ideias não eram validadas. Certa feita, ao argumentar acerca da atuação de um atleta numa das partidas do clube, o Diretor de Esporte, em tom de gracejo, retrucou: “- lá vem você, querendo ser Dunga”. Hoje consigo entender que atitudes assim colaboram para o silenciamento e sub-representatividade das mulheres.

Por algumas vezes, fui convidada a presidir o clube e declinei em razão de não me sentir pronta, ou, por acreditar não ser possível ser mulher e trabalhar com futebol. Meu relacionamento com a gestão no futebol é consagrado, digamos assim, em 2013, quando aceitei o desafio de montar chapa com o amigo desportista Pedro Henrique Ferreira e lançamos-nos como os mais novos presidente e vice-presidente da agremiação.

Nesse ínterim, liderei momentos preparatórios do time principal (preleção) nas partidas decisivas; contratei atletas para competições oficiais do município, a exemplo do Campeonato Jacobinense, principal competição de futebol amador da cidade da qual somos o atual campeão. De lá para cá, alguns fatos marcaram minha trajetória tanto no comando das equipes esportivas quanto na gestão; no comando da equipe de futsal, durante a realização dos Jogos Escolares da Bahia, ouvi um técnico adversário dizer abertamente que não aceitaria perder para uma mulher, para um time de p….(palavra de baixo calão). ” Detalhe: Foi um jogo escolar – ganhamos a partida! Noutra edição desses mesmos jogos, ao questionar sobre uma penalidade cobrada a desfavor da minha equipe, recebi uma enxurrada de xingamentos pós jogo, pelo árbitro da partida (fiz um boletim de ocorrência), fato que teve desdobramentos jurídicos; E o outro, na gestão, em que após questionar a ampliação do tempo numa partida oficial do campeonato jacobinense, tive minha fala invalidada e desqualificada.

Futsal
Fonte: Arquivo pessoal

Além da formação e especialização, me preparei ao longo da carreira para ocupar esses espaços no futebol. Fiz um curso promovido pela Federação Baiana de Futsal, e, mesmo apta e qualificada para estar nesse lugar de liderança, os desafios e obstáculos são constantes.

Em 2018, aceitei o convite do Conselho Deliberativo para ocupar a Presidência, nome unanimemente aprovado pelos membros associados. Uma das premissas para o aceite foi a efetiva liberdade e autonomia na tomada de decisões. Assim, no dia seis de junho do ano de dois mil e dezoito, fui empossada, tornando-me a primeira mulher, a alçar à categoria de presidente(a) de um clube de futebol amador no interior da Bahia. A postulação foi apresentada em ata pelo secretário João Bosco, pelo conselho deliberativo nas pessoas de Carlos Santana e Valmir Cardoso Lima, do atual presidente à época, Pedro Henrique Ferreira, que assinou a ata de sua aprovação registrando que ela estava sob responsabilidade.

Palmeiras
Fonte: Arquivo Memorial do Palmeiras E. Clube/Jacobina

Desde 2013 meu compromisso não é apenas proporcionar o funcionamento e manutenção do futebol, mas, questionar estruturas organizacionais nos departamentos de futebol, incluindo os setores internos da agremiação sobre a invisibilidade e apagamento das mulheres, cujo pioneirismo abriu espaço e constituíram a história do clube. Questionar essa realidade não se trata somente de romper com o paradigma do jogo de força e poder tão naturalizado no futebol, mas também, com as relações de dominação que silencia nossa voz.

Palmeiras
Fonte: equipe futebol arquivo pessoal, foto 1; foto 2 Jornal Tribuna Regional (2015)

Como presidente, fomentei as competições de base; apoiei, inscrevi e dei suporte logístico e financeiro nas competições locais e na microrregião; promovi mutirões de limpeza; coordenei a revitalização e melhoramento da infraestrutura do clube; criei o projeto do parque infantil sustentável, para que as crianças vivenciem atividades lúdicas; organizei e cataloguei pastas e arquivos para a construção do Memorial; produzi material audiovisual para publicizar as ações do clube e firmei parcerias e patrocínios para captação de recursos..

Foi preciso imprimir um ritmo de jogo duro e adotar um tom mais incisivo na condução dos trabalhos à frente da agremiação, em especial quando os meus posicionamentos não convergiam com os do clube, não eram levados à sério ou eram postos à prova. Metáfora do drible para diminuir os discursos instituídos socialmente. Gerir um clube de futebol amador me rendeu muitos troféus, mas, acredito principalmente, avanços para promover oportunidades para as mulheres no cenário monopolizado pelos homens.

Nesse sentido, é importante pensarmos conjuntamente sobre a atuação das mulheres em cargos de gestão no futebol a partir das nossas trajetórias pessoais, tantas vezes invisibilizadas, como uma forma de documentar e legitimar nossas narrativas nesse espaço, inclusive porque nossas presenças praticamente inexistem nos registros oficiais. Como perspectiva futura desejo que esta visibilidade sirva de inspiração a outras mulheres, a fim de que possam acreditar no potencial transformador que o futebol propicia.

Celebro e saúdo as pioneiras alviverdes que me antecederam e possibilitaram que eu chegasse à presidência do clube após 50 anos de sua fundação. Embora os avanços sejam incontestáveis, a exemplo das políticas de equidade, ainda há muito a se fazer; considero importante os debates, grupos de pesquisa e estudo como ferramentas de empoderamento para o público feminino.

Palmeiras
Fonte: Arquivo Memorial do Palmeiras E. Clube/Jacobina

Referências
GOELLNER, S.V. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. IjuÌ: Editora UNIJUÍ, 2003.

LEMOS, Doracy Araújo. Jacobina Sua História e Sua Gente. Editora Rabisco. 2° Edição. Jacobina, 2013

NUNES, Fábio Santana; RIBEIRO, Jean Carlo. Incidência histórica do esporte na região da Chapada Diamantina – Sertão baiano. Revista Cenas Educacionais. Caetité, v. 3, p. 1-21, 2020