Quando o segundo sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas.
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam se tratar
De um outro cometa. (Nando Reis)
O aniversário de dezessete anos do Caps II Jacobina traz à tona uma breve memória sobre o inicio dessa tarefa que tive a oportunidade de fazer parte.
Em 2005, no levantamento da situação, a implantação de serviços substitutivos era novidade na Bahia. Não houve essa solicitação por parte de familiares, usuários do SUS, conselho municipal de saúde, profissionais de saúde ou mesmo levantada como proposta eleitoral em Jacobina.
Voltemos ao primeiro sol: não tínhamos psicólogo ou psiquiatra no serviço público municipal. Aparentemente a demanda não existia.
Hoje, dezessete anos depois, muitas coisas aconteceram neste serviço. Muita gente passou, muitas estratégias de cuidado foram aprendidas, implantadas, interrompidas, torcidas e retorcidas, mesmo com um protocolo estabelecido desde 2002 pelo Ministério da Saúde. O maior gargalo, ainda persistente: a falta de concurso público para compor equipe mínima por maior tempo em contato com o coletivo de usuários, familiares e rede de cuidados.
Vemos o segundo sol despontar quando conseguimos aprovar proposta de construção de um complexo de serviços de atenção psicossocial junto a AGES, já em fase de finalização, que nos dará casa nova e definitiva, além de ampliação da rede de atenção psicossocial, com a chegada de espaço de acolhimento noturno para usuários do Caps II e do Caps infanto juvenil, que deverá ser inaugurado em meados de 2023, além de abrigar o Caps AD implantado em 2006.
O trabalho para reorganizar o arquivo do Caps II, com cerca de oito mil prontuários, por território, pois o reencontramos por nome de profissional médico, reavaliando o perfil adequado para ser admitido neste serviço, não foi fácil, mas já finalizado.
O perfil para ser admitido no Caps II envolve o quadro psíquico, sofrimento severo e persistente, além da adesão ao tratamento proposto por equipe multiprofissional. O guia da rotina de um Caps é seu acolhimento diurno, a rotina de atividades coletivas diárias, consultas individuais em mais de uma especialidade, para se chegar a um projeto terapêutico individualizado, que possa gerar autonomia de cuidado, não causando dependência a profissional e afastando o cidadão do seu território, da sua família.
Não é nada fácil mudar hábitos e seguir protocolos em saúde pública, especialmente no interior, onde a barganha do “jeitinho amigo” é muito grande. Até mesmo quebrar uma rotina absolutamente fora do contexto de atenção psicossocial entre profissionais da área se torna difícil, pois a zona de conforto pode levar a falta de avaliação técnica criteriosa, muitas vezes gerando desconfortos, mesmo que sadios e necessários.
Protocolo de volta ao seu curso de atenção psicossocial, revisão de prontuários concluída, arranhões e arestas reparados para compor uma rotina fundamentada no acolhimento diurno para quem realmente precisa de Centro de atenção psicossocial e não de ambulatório de psiquiatria, agora é manter as práticas de matriciamento e educação continuadas já iniciadas.
Em 2023 atuaremos nos territórios, informando a cada Equipe de Saúde da Família sobre os prontuários de cada usuário que reside e convive naquele lugar, com suporte dos agentes comunitários de saúde e de todos os técnicos das ESF.
O segundo sol poderá surgir ainda com nossas equipes de Caps incompletas, sem educadores sociais. Nossas equipes tiraram leite de pedra nestes dois anos. Ajustaram um atraso quantitativo e qualitativo dentro da rede sem a compreensão técnica da maioria. Trabalhamos sem a estrutura mínima de insumos e sem suporte adequado de pessoal, acatando as queixas dos usuários e familiares, algumas vezes no meio de uma crise de algum usuário crônico.
Parabéns a quem não jogou a toalha e mesmo para quem jogou, mas tentou fazer o melhor. A lógica da atenção psicossocial ainda não tem raízes sólidas na Bahia. O desejo pela volta dos manicômios persiste nas mentes sofridas de quem tomba na acomodação ou no cansaço e de quem ganhou muito dinheiro com internações de longa duração.
Mas, vamos prosseguir.
Não digo que não me surpreendi
Antes que eu visse, você disse e eu não pude acreditar,
Mas você pode ter certeza
Que o seu telefone irá tocar.
Em sua nova casa que abriga agora a trilha…
(…)Eu só queira te contar
Que eu fui lá fora e vi dois sois num dia
E a vida que ardia sem explicação. (O segundo Sol, Nando Reis)
Cledson Sady, novembro de 2022